Menu

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Café Clarisse Cafetina #LacerdaWins

Eu entrei no apartamento com duas sacolas de pães e dei de cara com Sophie sentada num sofá de couro preto. Nada como começar o dia com boas notícias:

_Se esse sofá está aqui, seria acertado supor que seu busto do Freud deve estar na cozinha, ao lado do filtro – digo, olhando-a com o máximo de desafio que se pode passar com quatro baguettes espetados pra fora de uma sacola de papel pardo.

_Seu sarcasmo não conhece limites, Sr. Lacerda. Estava esperando por você.

_É, eu imaginei. Tentei fazer hora na padaria o máximo que pude. Mas o senso de humor do Sr. Manuel não é lá grandes coisas.

_O nome do padeiro é Josias.

_Ah, todos os padeiros se chamam Manuel no meu mundo. Sobre o que se trata essa conversa tão aguardada?

_Sobre nós.

_Desculpe, mas depois do última ménage, acho que nós concordamos que não nascemos para a generosidade.

_Eu quero que você saiba que não estou aqui exclusivamente por ela.

_Acho que uma psicóloga famosa não precisa dividir o aluguel, o que me leva à pergunta irritante: Porque, então?

_Fui covarde com ela. Fiz com que ela escolhesse. Isso não foi justo. Quero fazer o certo.

_Tenho 23 anos. Sou escritor. E assisto Dr. House demais. O que significa que não confio muito na alma bondosa das pessoas.

_Não precisa. Só quero que me aceite.

_Eu até ajudei você a carregar as malas. Tudo bem que Bernardo me deu um cutucão, mas achei que a “aceitação” ficaria implícita.

_Não, Lacerda... – ela se levanta e pega umas das sacolas. Sigo os quadris dela até a cozinha _... Quero que você me aceite de verdade. Como amigos. Com quem Clarisse vai ficar, só o coração dela pode dizer.

_Vou repetir bem devagar, doutora: Eu não confio na alma bondosa das pessoas.

_Não seja idiota, escritor. Não precisamos ser inimigos – diz ela, sorrindo linda, passando manteiga num pedaço de pão. Ela já fez o café, que vaca!

_Porque você fez o café?

_hã?

_Eu perguntei porque você fez o caf´é, Sophie.

_Pra te ajudar... afinal, é só um cafezinho.

_Cafezinho?? “Cafezinho” é esse pingado que vocês tomam no boteco da esquina. Fazer um verdadeiro café é uma arte milenar passada na minha familia de geração em geração desde mil setecentos e não importa. Como você ousa chamar de...

_Lacerda, calaboca e toma café comigo?

Um segundo de silêncio e caímos na risada. Sento e parto um pão ao meio com uma faquinha de serra.

_Você é mineiro, não? – pergunta ela.

_Está escrito na minha testa ou percebeu só pela minha intimidade com preparos caseiros?

_Pelo modo como olha. Antropologicamente falando, os mineiros possuem uma calma e serenidade de espírito proveniente do cerco das montanhas. Uma vida arredia e desconfiada que induz o raciocínio.

_Ensinam discriminação e generalização vazia na faculdade de psicologia?

_Lacerda, eu quero ela.

_Tão óbvio quanto eu sei fazer café e você não.

_Como faremos isso?

_Partimos ela ao meio. Eu fico com o cérebro dela. A parte de baixo, embora útil, pode ficar com você e seus fetiches lingüísticos.

_Você não está me levando a sério.

_Tem razão. Mas é só uma negação. Evangelho segundo Freud, capítulo dois.

_Não tive coragem de tirá-la daqui. E agora com essa banda... ela está feliz demais aqui com vocês.

Bebo o café com gosto. Mas o prazer do cafezinho logo foi substituído pelo terror amargo da dosagem incorreta de pó. Foi ali que eu aprendi que psicólogos são ótimos com estereotipações generalizadas, mas péssimos com bebidas matinais.

_Está tão ruim assim?

_Numa escala de um a dez? 3.

Clarisse entra carregando uma guitarra nas costas, tropeçando no tapete felpudo. Pára na porta da cozinha, balançando as trezentas chaves daquele chaveiro.

_Obviamente ela está tonta – digo com o pão a meio caminho da boca.

_E nem preciso de Freud pra saber disso – completa Sophie.

Ela, Clarisse, tenta dizer algo, mas desiste. Faz uma expressão séria e carrancuda por exatos cinco segundos. Sim, eu contei. Depois cái na gargalhada:

_Meu Deus! Precisamos parar de nos encontrar desse jeito!

_É, precisamos – concordo, enfiando o pão na boca pra não falar nenhuma merda.

_Você não deveria estar bêbada. São 8 da manhã.



Então, Clarisse endireita o corpo o máximo que pode, desenha no próprio rosto aquele sorriso sacana e gostoso, e diz para nós dois, a platéia, como se jogasse beijos:

_Eu estou realmente ansiosa para ver vocês dois brigando por mim.



E sái. Simplesmente sai, carregando aquela Les Paul vermelha que a ajudei a escolher.

Sophie e eu nos encaramos como dois idiotas por algum tempo, incapazes de dizer algo ou fazer alguma coisa.

Por fim, ela baixa os olhos para a sua xícara e morde um pedacinho de pão, com os dedinhos em pé:

_Meu café não está tão horrível assim, caipira.

_Tem razão. 3 é uma nota considerável para uma não-mineira.

_Ah, cala a boca, Lacerda.

_Só se você me der a chave do quarto dela.

_Lacerda, enfia esse senso de humor no... – e essa foi a primeira vez que vi a Miss Simpatia ali falar um palavrão. E dos feios, meu amigo. Dos feios.

Nenhum comentário:

Postar um comentário